PARTE 2: SOLTANDO A VOZ
O ILHÉU (THE MANXMAN, 1929) foi o último filme mudo dirigido por Hitchcock. Um detalhe curioso foi a opção do diretor por não legendar a cena em que a protagonista do filme, interpretada pela alemã Anny Ondra, diz que está esperando um bebê. Ele considerou que podia-se entender perfeitamente a frase através de leitura labial. Prenúncio do fim das legendas...
Com a palavra, Hitchcock
Norma
Desmond, a protagonista de CREPÚSCULO DOS DEUSES (SUNSET BOULEVARD, 1950),
havia sido uma grande diva do cinema mudo, e o novo cinema falado foi o fim
anunciado de sua carreira: Norma não conseguia mais trabalho, tornando-se uma
estrela (de)cadente. Desesperada em voltar para a luz dos holofotes, aprisiona
um roteirista em sua casa, forçando-o a escrever um filme mudo que teria ela
como estrela. Ao constatar que seu prisioneiro era um escroque e que seu plano
falharia, ela o mata, revivendo novamente a fama, desta vez no papel de
assassina.
Se
Norma Desmond tivesse encontrado Alfred Hitchcock, talvez não tivesse tido um destino
tão trágico. Se dependesse de seu desejo, ele continuaria fazendo filmes sem
falas durante toda a vida. O ILHÉU foi considerado por ele um filme banal, e
Hitchcock chegou ainda a declarar que seu único mérito era justamente o fato de
este ser seu último filme mudo.
Hitchcock dizia
que os filmes mudos eram a forma pura de cinema. Para ele, a única coisa que
lhes faltava era o som que saía da boca das pessoas e ruídos, ou seja, sons
naturais, e que essas pequenas imperfeições não justificavam as mudanças que o
advento do cinema falado causou. Ele acreditava que muito do cinema havia se
perdido desde então, e que a sétima arte passou a ser uma mera "fotografia
de pessoas que falam”. Mas até mesmo o mestre do suspense teria que se adaptar
aos novos tempos.
CHANTAGEM
E CONFISSÃO (BLACKMAIL, 1929), rodado no mesmo ano que O ILHÉU (e também
protagonizado por Anny Ondra), foi o primeiro filme falado de Hitchcock. Nele,
a personagem de Ondra sofre uma tentativa de estupro e mata seu agressor. Passa
então a ser chantageada, ao mesmo tempo em que é protegida por seu namorado, o
detetive que fora designado para investigar o caso. O chantagista acaba
morrendo durante uma perseguição e a mocinha decide se entregar, mas seu
namorado protetor a livra da prisão. O final originalmente imaginado por
Hitchcock era colocar a mocinha atrás das grades, mas os produtores acharam que
seria um fim deprimente.
Outro
ponto de discórdia entre os produtores foi em relação à sonorização do filme.
Hesitantes, eles decidiram que este seria ainda um filme mudo, com exceção do
último rolo (seria um filme "parcialmente sonoro", como era chamado
na época). Hitchcock, desconfiando que eles mudariam de ideia, encontrou a
solução: utilizou a técnica do cinema falado, mas sem o som. Quando os
produtores voltaram atrás outra vez, as falas puderam ser então colocadas. O
que resultou dessa confusão foi a existência de duas versões de CHANTAGEM E
CONFISSÃO, uma muda e a outra falada.
Outro
dado curioso do filme foi o fato de sua protagonista não falar bem inglês.
Assim, a atriz inglesa Joan Barry - que mais tarde atuaria em RICH AND STRANGE
(1931) - ficava em uma cabine fora do enquadramento da câmera e dizia o texto em
um microfone, enquanto Anny Ondra mexia os lábios. Quase como nos tempos do cinema
mudo.
Com a versão
falada de CHANTAGEM E CONFISSÃO chegando aos cinemas, Hitchcock tornava-se um
pioneiro no cinema inglês: ele dirigira o primeiro longa-metragem da era sonora
produzido na Inglaterra. E, mesmo tendo um diretor avesso à nova técnica, o
filme trazia em seu cartaz promocional uma provocação aos americanos, seus
concorrentes. Nele se lia: "See and hear it - our mother tongue as it
should be spoken" (“veja e ouça - nossa língua materna como deve ser
falada”). A fina ironia britânica.
É como disse uma
personagem do filme, ao comentar a violência do assassinato: "Uma boa
pancada na testa é uma coisa. Há algo de britânico nisso. Mas com uma
faca?".
* Trabalho de minha autoria produzido em tempos acadêmicos.
O ILHÉU (THE MANXMAN, 1929)
O ILHÉU (THE MANXMAN, 1929)
Direção:
Alfred Hitchcock
Com: Anny Ondra, Carl Brisson etc.
CHANTAGEM E CONFISSÃO (BLACKMAIL, 1929)
Direção: Alfred Hitchcock
Com: Anny Ondra, John Longden etc.
RICH AND
STRANGE (1931)
Direção:
Alfred Hitchcock
Com: Henry
Kendall, Joan Barry etc.
CREPÚSCULO DOS DEUSES (SUNSET BOULEVARD, 1950)
Direção:
Billy Wilder
Com: Gloria
Swanson, William Holden etc.