quarta-feira, 15 de maio de 2013

Meus anos dourados com Hitch, ou Alfred Hitchcock em 12 capítulos e 1 epitáfio *



PARTE 9: NO DIVÃ COM HITCHCOCK - PRIMEIRA PARTE

Um filho temporão criado por uma família severamente católica em um país predominantemente protestante. Quando criança, nas reuniões familiares isolava-se em um canto sem dizer nada, apenas observando. Com apenas cinco anos de idade, foi mandado "preso" por seu próprio pai, por dez minutos que valeram por uma prisão perpétua, sem nunca saber o porquê. Aos onze, interno em uma escola jesuíta, vivia sob o temor da palmatória. Ainda mais isolado, o jovem gordinho e sem atrativos passava as horas do recreio “encostado num muro, olhava para os coleguinhas jogando bola, com um ar de desprezo, as duas mãos já cruzadas sobre a barriga”. 

Fascinado por cinema e crimes, nosso atípico herói dividia suas tardes ociosas da juventude entre o cinema e os tribunais, aonde ia assistir a julgamentos. Casou-se virgem aos 25 anos, e nunca em sua vida conheceu outra mulher. Nada mais natural que o assustado confesso, que se sentia deslocado no mundo, refletisse seu descrédito na humanidade e na divina providência em seus filmes, ao se tornar diretor. 

Gênese 

Alegorias religiosas estão presentes em toda a filmografia de Hitchcock, especialmente nos primeiros anos. Já no primeiro filme que dirigiu, THE PLEASURE GARDEN (idem, 1925), a imagem de uma serpente se enroscando em uma árvore nos remete diretamente ao pecado original. O mesmo ofídio gerador do pecado no paraíso seria utilizado pelo diretor dois anos depois, em O RINGUE (THE RING, 1927), só que desta vez na forma de um bracelete que contribui para o agravo da rivalidade entre dois homens pelo amor de uma mulher. 

Em O INQUILINO SINISTRO (THE LODGER: A STORY OF THE LONDON FOG, 1927), o homem acusado de ser um serial killer na linha Jack, o estripador, após ser algemado, tenta fugir e acaba ficando preso pelas algemas a uma grade, como um crucificado. A volta do filho pródigo pode ser uma metáfora para a história do jovem expulso de casa pelo pai após ser injustamente acusado por um crime que não cometeu, em DOWNHILL (idem, 1927). 

Anos mais tarde, já nos EUA, Hitchcock conta o inferno vivido por um padre que é acusado pelo assassinato cometido por um homem que lhe confessou a culpa no confessionário. Só um milagre, ou a boa vontade dos homens, poderá salvar o padre Logan de A TORTURA DO SILÊNCIO (I CONFESS, 1953). Uma das vítimas do estrangulador de FRENESI (FRENZY, 1972) cita um salmo antes de morrer, implorando clemência a Deus. 

Mundo cruel 

Bodo Fründt, autor de Hitchcock e seus filmes, interpretou a essência da obra cinematográfica de Hitchcock como sendo uma "descrição de nossa vida como uma pequena cela, parte de uma prisão maior. É como se fugíssemos de uma casa em chamas e nos deparássemos com o mundo incendiado”. 

Quando tio Charlie, de A SOMBRA DE UMA DÚVIDA (SHADOW OF A DOUBT, 1943), fica sabendo que sua sobrinha descobriu que ele é um assassino de viúvas ricas, diz a ela que o mundo é um lugar horrível, destruindo as ilusões da doce menina. Ele matava as senhoras não para usurpar seu dinheiro, mas sim porque as considerava vis e superficiais. Suas existências se baseavam em futilidades, pessoas assim não faziam falta ao mundo. 

Compartilhavam do mesmo raciocínio Brandon Shaw e Phillip Morgan (interpretados respectivamente por John Dall e Farley Granger), personagens de FESTIM DIABÓLICO (ROPE, 1948). Por pura diversão, matam um colega de faculdade e o escondem dentro de um baú que ficará à vista de todos durante uma festa, cujos convidados, incluindo o pai e a namorada da vítima, nem suspeitam do que se passa. Só restou ao professor Rupert Cadell (James Stewart), um dos convidados para o festim, que desmascarou a sórdida trama, desabafar: "O mundo e as pessoas são obscuros e incompreensíveis” (detalhe: o filme baseia-se em história real). 

Dostoiévski, em sua obra máxima Crime e castigo (publicada em 1866), já havia desenvolvido a perigosa teoria de que existem pessoas inferiores e superiores, e que as primeiras são descartáveis: seu protagonista, Raskólnikov, para quem o mundo estava dividido em pessoas ordinárias e pessoas extraordinárias, usara o argumento para justificar para si o assassinato da velha agiota a quem ele devia. Poucos anos depois, em 1883, tal ideia ganharia embasamento filosófico com Nietzsche, em seu livro Assim falou Zaratustra, em que lançou o conceito de super-homem: o homem superior, com "vontade de potência". 

A concepção de um homem superior serviria ainda como base para atrocidades cometidas pelos regimes nazi-fascistas, especialmente o de Hitler, que, através da teoria da raça ariana justificou o extermínio de milhares de judeus, ciganos e outros povos que não tivessem "sangue puro". 

FESTIM DIABÓLICO foi realizado três anos após o término da Segunda Guerra Mundial, e a análise do crítico Guido Bilharinho sobre o filme é a de que ele "fere questão cara (e triste) para aqueles tempos recentemente saídos do pesadelo nazista, sepultado então, há apenas dois ou três anos antes e, portanto, ainda presente, assoberbante: a teoria do pretenso ser superior e sua (mais pretensa ainda) possibilidade de decidir o destino (e a vida) do (também suposto) indivíduo inferior”. 

Culpados ou inocentes 

Em um mundo caótico, nada mais amargo que o sentimento de injustiça experimentado por um inocente em pagar pelo erro de outra pessoa e a luta em provar sua inocência, tema explicitado ao máximo em O HOMEM ERRADO (THE WRONG MAN, 1956). O oposto aconteceu com a esposa de Manny, Rose: igualmente inocente, culpou-se pelo destino do marido. Rose tinha complexo de culpa. Dois outros personagens de Hitchcock padeceram do mesmo mal: o detetive Scottie, vivido por James Stewart em UM CORPO QUE CAI (VERTIGO, 1958) e John Ballantine, interpretado por Gregory Peck em QUANDO FALA O CORAÇÃO (SPELLBOUND, 1945). Os homens errados de Hitchcock são conscientes de sua inocência, mas estes, ao contrário, apesar de inocentes, creem-se culpados. 

O detetive Scottie acreditava ser o responsável pela morte da mulher a quem deveria proteger, sem saber que ela nunca morrera de verdade: ele fora envolvido em um plano onde tal morte havia sido simulada. Já John Ballantine passara toda a vida carregando na consciência a culpa pela morte do irmão, ocorrida em sua infância. Com a ajuda da psiquiatra Constance Petersen (Ingrid Bergman), Ballantine descobre sua inocência: a morte de seu irmão foi um acidente. 

Sonhos, de Alfred Hitchcock 

Dra. Petersen conseguiu livrar Ballantine de seu complexo por meio da interpretação de seus sonhos. O mesmo aconteceria com a personagem-título de MARNIE, CONFISSÕES DE UMA LADRA (MARNIE, 1964), vivida por Tippi Hedren. Através dos sonhos de Marnie, Mark Rutland (Sean Connery), que se envolvera afetivamente com a moça, encontrou a chave para a explicação da cleptomania de sua amada. 

Freud, pai da psicanálise, foi quem primeiro se ocupou da interpretação dos sonhos para a resolução de transtornos psíquicos. Ele desfez quaisquer crenças que ainda pudessem existir de que os sonhos se relacionavam com mundos sobrenaturais, como se acreditava desde a pré-história até a Antiguidade Clássica. 

Segundo o médico austríaco, "Todo sonho se revela como uma estrutura psíquica que tem um sentido e pode ser inserida num ponto designável nas atividades mentais da vida de vigília”. O médico fornece esta explicação em A interpretação dos sonhos, compêndio que escreveu, em dois volumes, sobre o assunto e que lançou as bases para a Psicanálise como é conhecida até os dias de hoje. 

Hitchcock, contudo, quando perguntado por Truffaut se seus filmes teriam um lado onírico, respondeu-lhe que eles são "devaneios diurnos”. Curiosamente, o mestre do suspense contou a seu interlocutor que quase nunca sonhava. 

Entretanto, em QUANDO FALA O CORAÇÃO, chamou o surrealista Salvador Dalí para a concepção da cena em que é mostrado o intrincado sonho de Ballantine, repleto de significações. A obra do pintor espanhol, declaradamente influenciado pelas teorias de Freud, é repleta de imagens oníricas, sendo a Persistência da memória uma de suas telas mais conhecidas. Dali também pintava imagens católicas, carregadas com seu toque surrealista, como a Madona da rosa mística

Complexos 

Freud não se tornou mundialmente conhecido como "pai da psicanálise" apenas por sua interpretação dos sonhos. A livre associação de ideias e o complexo de Édipo são duas teorias freudianas que também foram abordadas em filmes hitchcockianos. A primeira foi utilizada por Marnie e Mark, antes que este se desse conta de que o caminho para a resolução dos conflitos de Marnie era a análise de seus sonhos. Já o complexo de Édipo, que versa sobre a relação mãe e filho e suas implicações na personalidade desta criança ao se tornar adulta, pode ser vista em diversos filmes de Hitchcock, em diferentes intensidades. 

PSICOSE (PSYCHO, 1960) foi o mais célebre exemplo. Norman Bates (Anthony Perkins) nutria uma paixão tão violenta por sua mãe que, tomado de ciúmes por sua relação com seu padrasto, mata os dois. Mas a nova realidade que ele teria de enfrentar, sem a presença materna, era tão assustadora que ele a traz "de volta à vida": primeiro rouba seu corpo, já putrefato, e o embalsama, vestindo-o com as roupas da falecida. E para manter o espírito de sua mãe vivo, incorpora sua personalidade, falando com sua voz e vestindo suas roupas. Bates, que é dono de um motel de estrada, se perturba com a chegada da hóspede Marion Crane (Janet Leigh), por quem se sente atraído. Para sufocar este desejo, que trairá seu amor pela mãe e a dualidade de sua personalidade, ele a mata.

Mães dominadoras como a de Norman podem ser encontradas em outros filmes, ainda que em menor grau de complexidade. O personagem de Rod Taylor em OS PÁSSAROS (THE BIRDS, 1963) era um homem maduro e solteirão, que não conseguia se comprometer a mulher alguma devido às constantes reprovações de sua mãe. O nazista de Claude Rains em INTERLÚDIO (NOTORIOUS, 1946), ao descobrir que seu casamento fora uma armadilha, corre à sua mãe, contando-lhe envergonhado e em tom de perdão e medo de reprimenda: "Me casei com uma espiã". Marnie tinha na aparente falta de amor de sua mãe a justificativa para sua cleptomania. 

É como diz um personagem de FESTIM DIABÓLICO a certa altura: "Freud tem explicação para tudo".



* Trabalho de minha autoria produzido em tempos acadêmicos



THE PLEASURE GARDEN (1925) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Virginia Valli, Carmelita Geraghty etc.


O INQUILINO SINISTRO (THE LODGER: A STORY OF THE LONDON FOG, 1927)
Direção: Alfred Hitchcock
Com: Ivor Novello, Marie Ault etc.


O RINGUE (THE RING, 1927) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Carl Brisson, Lillian Hall-Davis etc.


DOWNHILL (idem, 1927) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Ivor Novello, Ben Webster etc.


A SOMBRA DE UMA DÚVIDA (SHADOW OF A DOUBT, 1943) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Teresa Wright, Joseph Cotten etc.


QUANDO FALA O CORAÇÃO (SPELLBOUND, 1945) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Ingrid Bergman, Gregory Peck etc.


INTERLÚDIO (NOTORIOUS, 1946)
Direção: Alfred Hitchcock
Com: Ingrid Bergman, Cary Grant, Claude Rains etc.


FESTIM DIABÓLICO (ROPE, 1948)
Direção: Alfred Hitchcock
Com: Farley Granger, John Dall, James Stewart etc.


A TORTURA DO SILÊNCIO (I CONFESS, 1953)
Direção: Alfred Hitchcock
Com: Montgomery Clift, Anne Baxter etc.


O HOMEM ERRADO (THE WRONG MAN, 1956)
Direção: Alfred Hitchcock
Com: Henry Fonda, Vera Miles etc.


UM CORPO QUE CAI (VERTIGO, 1958)
Direção: Alfred Hitchcock
Com: James Stewart, Kim Novak etc.


PSICOSE (PSYCHO, 1960) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Anthony Perkins, Vera Miles, Janet Leigh etc.


OS PÁSSAROS (THE BIRDS, 1963) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Tippi Hedren, Rod Taylor, Jessica Tandy etc.


MARNIE, CONFISSÕES DE UMA LADRA (MARNIE, 1964)
Direção: Alfred Hitchcock
Com: Tippi Hedren, Sean Connery etc.


FRENESI (FRENZY, 1972)
Direção: Alfred Hitchcock
Com: Jon Finch, Alec McCowen etc.