PARTE 10: NO DIVÃ COM HITCHCOCK - SEGUNDA PARTE
"Para cada pessoa que busca o medo no sentido real, pessoal, há milhões que o procuram de forma indireta, no teatro e no cinema”. A afirmação é de Hitchcock que, para explicar o porquê das pessoas irem ao cinema para sentir medo, fez uma distinção entre suspense e surpresa. O mestre do suspense afirmava que o medo no cinema divide-se em duas categorias: terror e suspense. O primeiro vem da surpresa; o segundo, do aviso antecipado.
Para ilustrar sua teoria, Hitchcock dá como exemplo uma situação plausível, para que seja analisada sob as duas óticas: um casal de amantes se encontra no apartamento dela, enquanto o marido está viajando. Primeira possibilidade: eles têm certeza de que o marido está viajando e não voltará naquele dia, mas de repente eis que ele irrompe no quarto, surpreendendo-os: terror! Segunda possibilidade: eles temem que o marido possa aparecer, existe essa chance. A câmera mostra o marido descendo do avião. Ele sai do aeroporto e toma um táxi. O carro para na porta do edifício e ele desce. Coloca a chave na fechadura. O público está vendo isso tudo, mas o casal de amantes não: suspense.
E por que as pessoas sentem prazer em ter medo no cinema? Porque sabem que estão seguras. Hitchcock dizia que a agradável sensação de medo experimentada em uma montanha-russa, por exemplo, não existiria caso fosse considerada a possibilidade de que o carro pudesse se desgovernar. Analogamente, embora armas possam ser usadas na tela, a plateia sabe que não será atingida por balas de revólver e facadas, ou seja, não pagará o "preço do medo".
O manto protetor
Da mesma forma, o público sabe que tampouco o personagem com quem se identifica pagará este preço, mas essa segurança deve ser inconsciente, para que o filme seja realmente motivador. O espectador sabe que a mocinha será salva, mas deve se abstrair disso, do contrário não sentiria medo e sim tédio. É como se um "manto protetor" protegesse o herói de quaisquer danos.
"Uma vez plenamente estabelecidas as simpatias e terminado o manto, não é justo - na opinião da plateia e de muitos críticos - violar o manto e dar a seu usuário um fim desastroso”, analisou Hitchcock, lembrando o exemplo em que violou esta regra, com o garotinho de SABOTAGEM (SABOTAGE, 1936). O menino andava pelas ruas com o que pensava ser uma lata de filme debaixo do braço, sem saber que se tratava, na verdade, de uma bomba-relógio. Embora aflito, o público sabe, no fundo, que ele está protegido por seu manto, algo irá salvá-lo do mal a tempo. Mas a bomba explode, matando não somente o garotinho como todos os passageiros do ônibus que ele havia pego - terror!
Hitchcock foi alvo de inúmeras críticas por causa desta cena - ele havia destruído o manto protetor e quebrado a confiança da plateia. Mais de vinte anos depois, em PSICOSE (PSYCHO, 1960), Marion Crane tampouco estaria protegida pelo manto no momento em que o travestido Norman Bates a surpreende no chuveiro...
Olhos que tudo veem
A revolta gerada com a morte do menino em SABOTAGEM se deve à identificação do público com o personagem - as pessoas se afeiçoaram a ele, torciam por ele. Isso acontece sempre que se dá a identificação. Esta, por sua vez, terá mais chance de ocorrer quanto mais próximo o espectador se sentir do personagem. E a maior parte desta tarefa está nas mãos do diretor do filme.
Hitchcock era um voyeur declarado. Desde criança observava a tudo e a todos, e daí obteve bom material de estudo humano, sem nunca precisar ter se tornado um psicanalista. E com seu talento, soube fazer com que a câmera fosse seus olhos, e por consequência o olhar de seu público. O olhar é a estrela principal de JANELA INDISCRETA (REAR WINDOW, 1954). O personagem de James Stewart está com a perna engessada e, ainda muito longe do surgimento da internet, não tem mais nada a fazer senão espionar os vizinhos do prédio em frente (afinal, ele é repórter fotográfico...).
O tema do filme é a suspeita de um crime, mas seu principal atrativo acaba sendo mesmo a observação dos vizinhos: o público toma o lugar de James Stewart e passa a observá-los também, pelas lentes do binóculo do personagem. Cada janela é como se fosse uma tela de cinema, contando as mais diferentes histórias do cotidiano de uma grande cidade: a senhora solitária, o casal sem filhos que substitui o amor filial pelo de um cachorro, a ninfeta que tem vários homens a seus pés etc.
Como analisou o crítico Guido Bilharinho, "(...) Hitchcock conduz seu olhar atento, vigilante e analítico sobre o espetáculo do mundo. É a vida, focalizada em algumas de suas demonstrações, que é vista, observada e filmada. A suspeita de crime, conquanto fio condutor da ação, nada mais é, no contexto, do que uma dessas manifestações.
(...) Daquela janela famosa contempla-se o passar da existência, a diversidade do ser humano e variado conjunto de problemáticas pessoais”.
Em seu Seminário I, Lacan disse: "Posso me sentir sob o olhar de alguém cujos olhos não vejo, nem sequer faço distinção. Basta que eu saiba por alguma razão que ali pode haver outros”.
O apocalipse segundo Alfred
A metáfora religiosa, analisada no capítulo anterior, na obra hitchcockiana atinge seu ápice em 1963, com OS PÁSSAROS (THE BIRDS, 1963), considerado por Federico Fellini "um poema apocalíptico”. A história se passa no balneário de Bodega Bay, próximo a San Francisco, Califórnia. Sem qualquer motivo aparente, bandos de pássaros começam a atacar violentamente as pessoas - um filme-catástrofe bastante original, que só a mente de um gênio do cinema poderia conceber. Seria o contra-ataque da natureza? Uma curiosa inversão de papéis acontece durante o filme: os moradores de Bodega Bay, assustados, para se proteger dos pássaros furiosos, trancam-se em suas casas ou onde quer que estejam. Agora são os humanos que estão aprisionados em suas "gaiolas".
Pássaros antes inofensivos agora ferem as pessoas até a morte. Este pode ser um indício do fim dos tempos, mas a intelectual americana Camille Paglia, feminista radical, enxergou no filme "uma ode perversa ao glamour sexual da mulher”. Para ela, o filme aborda dois temas: cativeiro e domesticação, com a casa simbolizando, simultaneamente refúgio e armadilha feminina. Camille completa afirmando que "há dez mil anos, quando o homem se fixou num lugar, tomou animais a seu serviço. Mas a domesticação seria seu destino também, pois ele sucumbiu ao controle feminino. OS PÁSSAROS registra um retorno dos reprimidos, uma liberação de forças primitivas de sexo e apetite que foram subjugadas, mas não domadas”.
Análises feministas ou psicanalíticas à parte, quem melhor traduziu a simbologia não apenas de OS PÁSSAROS, mas de toda a obra de Hitchcock, foi mesmo a senhora admiradora de pássaros neste filme, que duvidando da veracidade das notícias sobre os ataques das aves, que ainda se iniciava, as defende: "A raça humana é que dificulta a existência da vida no planeta".
* Trabalho de minha autoria produzido em tempos acadêmicos
SABOTAGEM / O MARIDO ERA O CULPADO (SABOTAGE, 1936)
Direção: Alfred Hitchcock
Com: Oskar Homolka, Sylvia Sidney etc.
JANELA INDISCRETA (REAR WINDOW, 1954)
Direção: Alfred Hitchcock
Com: James Stewart, Grace Kelly, Thelma Ritter etc.
PSICOSE (PSYCHO, 1960)
Direção: Alfred Hitchcock
Com: Anthony Perkins, Vera Miles, Janet Leigh etc.
OS PÁSSAROS (THE BIRDS, 1963)
Direção: Alfred Hitchcock
Com: Tippi Hedren, Rod Taylor, Jessica Tandy etc.