quarta-feira, 10 de abril de 2013

Meus anos dourados com Hitch, ou Alfred Hitchcock em 12 capítulos e 1 epitáfio *


PARTE 4: A ENTREVISTA

François Truffaut, assim como Alfred Hitchcock, é um nome histórico na cinematografia mundial. O cineasta francês, juntamente com Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, Claude Chabrol, Louis Malle, Alain Resnais e Jacques Rivette, criou o movimento Nouvelle Vague, inaugurando uma nova fase do cinema francês. 

Truffaut nunca escondeu a grande admiração que nutria por Hitchcock, a quem considerava efetivamente um mestre: ao longo dos anos 50 escreveu 27 artigos sobre ele na revista Cahiers du Cinema. Em 1962, Truffaut estava em Nova Iorque para apresentar seu filme JULES E JIM – UMA MULHER PARA DOIS (JULES ET JIM, 1962) e se surpreendeu ao descobrir que seu mestre era considerado pela crítica norte-americana um produto comercial: seus detratores alegavam que os filmes hitchcockianos não tinham "substância". Os jornalistas perguntavam ao pai da Nouvelle Vague por que os críticos da Cahiers du Cinema levavam Alfred Hitchcock a sério. 

O cineasta francês percebeu então que Hitchcock havia sido vítima da imagem que propositalmente construíra para si mesmo: o bonachão que dava entrevistas galhofeiras e deliberadamente cômicas não agradava aos intelectuais. Foi disposto a reparar a injusta visão sobre a obra de Hitchcock que Truffaut teve a idéia de realizar uma ampla entrevista com seu mestre, que consistiria em quinhentas perguntas abrangendo, em ordem cronológica, todas as fases de sua carreira e todas as etapas e aspectos da produção dos filmes. 

Em junho de 1962, Hitchcock terminava de filmar OS PÁSSAROS (THE BIRDS, 1963) quando recebeu uma longa carta de Truffaut explicando o projeto da entrevista. A resposta chegou ao então iniciante diretor francês por telegrama: "A sua carta fez-me vir lágrimas aos olhos”. 

A entrevista foi gravada durante oito dias do mês de agosto, na Universal City, totalizando cinquenta horas de gravação, com o auxílio de Helen Scott, amiga americana de Truffaut, pois ele não falava inglês. A transcrição das fitas levou quatro anos, e a primeira edição foi publicada em 1967, alcançando a filmografia de Hitchcock até CORTINA RASGADA (TORN CURTAIN, 1966). Na chamada edição definitiva da entrevista há um capítulo suplementar em que Truffaut inclui observações sobre TOPÁZIO (TOPAZ, 1969), FRENESI (FRENZY, 1972) e TRAMA MACABRA (FAMILY PLOT, 1976) e uma derradeira entrevista feita em maio de 1972, quando Hitchcock iria apresentar FRENESI no Festival de Cannes. 

No prefácio à edição brasileira da entrevista - Hitchcock/Truffaut: Entrevistas (Companhia das Letras) -, o crítico de cinema Ismail Xavier diz que "o diálogo Truffaut/Hitchcock marca a idade de ouro da cinefilia como religião produtiva, na França, na Itália e na América Latina, fundamental no avanço do cinema moderno. A conjunção foi especial, pois os cineastas que lideraram as transformações, ao proclamarem as virtudes intelectuais e morais da mise-en-scene, não sonegaram sua reverência aos mestres do cinema clássico, chegando, no caso de Hitchcock, a definir uma quase identidade entre a compreensão de sua obra e a do próprio cinema”. 

Hitchcock / Truffaut 

Ao longo da conversa, o mestre do suspense, além de analisar tecnicamente seus filmes, surpreende ao emitir suas opiniões pessoais sobre sua própria obra. Bastante autocrítico ou dotado de uma mordaz humildade, Hitchcock é por muitas vezes severo demais com o resultado de seu trabalho. Usou adjetivos não muito lisonjeiros para alguns de seus filmes, como "banal", "história medíocre", "cilada" e "história bem velhinha, fora de moda", entre outros. A mesma impiedade consigo mesmo foi dirigida para os atores e atrizes com quem trabalhou: este não ficou bem naquele filme, aquele filme teria sido melhor se estrelado por aquele outro ator ou aquela outra atriz. 

Além disso, Hitchcock faz algumas revelações curiosas, como a de que a pessoa por trás das facadas desferidas contra Janet Leigh no chuveiro não é Anthony Perkins vestido de mulher, mas sim uma autêntica representante do sexo feminino. E também conta episódios divertidos, como a "resposta" da atriz Carole Lombard à sua célebre declaração de que os atores são gado: no primeiro dia de filmagens de UM CASAL DO BARULHO (MR. & MRS. SMITH, 1941), a atriz havia mandado construir uma jaula com três compartimentos, e dentro de cada um havia colocado uma vaca. Em volta de seus pescoços, placas com os nomes Carole Lombard, Robert Montgomery e Gene Raymond, os atores do filme. 

Ou galã ou vilão 

Ao falar de seu primeiro filme importante, O INQUILINO SINISTRO (THE LODGER: A STORY OF THE LONDON FOG, 1927), sobre um homem suspeito de ser um assassino de mulheres que termina por ter sua inocência provada, Hitchcock conta que gostaria de ter dado outro final à história: 

"O ator principal, Ivor Novello, era um astro do teatro na Inglaterra. Aí está um dos problemas que devemos enfrentar com o star-system: volta e meia a história fica comprometida porque a estrela não pode ser um vilão. (...) Gostaria que ele fosse embora, de noite, e que jamais conseguíssemos saber a verdade. Mas não se pode fazer isso com um herói interpretado por um astro. É preciso dizer: ele é inocente. (...) Dezesseis anos depois, deparei com o mesmo problema ao filmar SUSPEITA (SUSPICIOUN, 1941), com Cary Grant. Era impossível fazer de Cary Grant um assassino”. 

"Whodunit" 

Contração da pergunta who has done it? ("quem fez isso?”), whodunit pode ser um romance, peça ou filme policial do tipo "Quem matou?", gênero que não agradava ao mestre do suspense: 

"Sempre evitei os whodunits, pois em geral o interesse se concentra exclusivamente na parte final. (...) Faz pensar num quebra-cabeça ou num jogo de palavras cruzadas. Você espera tranquilamente a resposta para a pergunta: ‘Quem matou?’. Nenhuma emoção. Isso me lembra uma história. Quando a televisão começou, havia dois canais concorrentes. O primeiro anunciou um programa whodunit. E logo antes do programa, um locutor do canal rival anunciou: ‘No whodunit que vão passar no canal rival, já podemos lhes dizer que foi o mordomo quem atirou’”. 

Participações mais que especiais 

Sobre suas aparições em seus filmes, Hitchcock brincou: "Era estritamente prático, eu precisava encher a tela. Mais tarde tornou-se uma superstição, e depois virou uma gag. Mas agora é uma gag bastante constrangedora, e, para permitir que as pessoas assistam tranquilas ao filme, tenho o cuidado de me mostrar ostensivamente nos primeiros cinco minutos da projeção”. 

"MacGuffin" 

Objeto em torno do qual se desenvolve a ação de alguns filmes de Hitchcock, MacGuffin é definido pelo mestre como um nada, um vazio. O MacGuffin de OS 39 DEGRAUS (THE 39 STEPS, 1935) é uma fórmula matemática ligada à construção de um motor de avião (que nem sequer é vista, pois não existia no papel). Em A DAMA OCULTA (THE LADY VANISHES, 1938), é uma canção codificada (objeto imaterial - há que se confiar na voz e na memória). Uma cláusula de um tratado de defesa tão secreto que as partes envolvidas devem memorizá-la, não podendo pô-la no papel, este é o MacGuffin de CORRESPONDENTE ESTRANGEIRO (FOREIGN CORRESPONDENT, 1940). 

De acordo com a PhD em filosofia Mladen Dolar, os MacGuffin são a significação por si só, sendo seu conteúdo real totalmente insignificante. Apesar de estarem no núcleo da ação, são irrelevantes, porque sua materialidade é desnecessária, basta que saibamos sobre sua existência. 

Hitchcock contou a Truffaut a anedota escocesa que deu origem ao termo: "Dois homens estão em um trem. Um pergunta ao outro: ‘O que é esse embrulho que você colocou no bagageiro?’. O outro responde: ‘É um MacGuffin’. O primeiro se intriga: ‘O que é um MacGuffin?’. O segundo responde: ‘É um aparelho para pegar leões nas montanhas Adirondak’. Ao que o primeiro retruca: ‘Mas não há leões nas Adirondak!’. O outro então conclui: ‘Nesse caso, não é umMacGuffin!’”. 

Voyeurismo

"Aposto com você que nove entre dez pessoas, se virem do outro lado do pátio uma mulher se despindo antes de ir dormir, ou simplesmente um homem que faz uma arrumação em seu quarto, não conseguirão deixar de olhar. Poderiam desviar os olhos, dizendo: ‘Não tenho nada a ver com isso’, poderiam fechar suas janelas. Pois bem, não fecharão, ficarão ali olhando”. 

Peculiar senso de humor 

História contada por Hitchcock: "(...) num aniversário de minha mulher, tínhamos um jantar de umas doze pessoas no jardim de um restaurante. Eu havia contratado (...) uma velha senhora aristocrática de certa idade, alinhadíssima, e a instalei no lugar de honra. Depois, ignorei-a completamente. Os convidados chegavam, uns após os outros, olhavam a grande mesa onde só a velha estava sentada, e todos perguntavam: ‘Mas quem é a velha ricaça?’. Eu respondia: ‘Não sei’. Só os garçons do restaurante conheciam a gag, e minha mulher perguntava a eles: ‘Mas o que foi que ela disse, ninguém falou com ela?’. ‘Essa mulher nos disse que tinha sido convidada para a festa do senhor Hitchcock’. Quando me perguntavam, eu insistia: ‘Mas não sei quem é ela’. Todos a olhavam, todos indagavam: ‘Mas quem é ela? Afinal, é preciso saber...’. Estávamos no meio do jantar quando um escritor deu um soco na mesa e disse: ‘É uma gag’. Então todos os olhares se voltaram para a velha ricaça e o escritor se voltou para um outro convidado, um jovem que alguém tinha levado, e disse ao rapaz: ‘E você também, você é uma gag!’. 

Gostaria de retomar essa brincadeira e levá-la mais longe. Contrataria uma mulher desse tipo para um jantar e a apresentaria como se fosse minha tia. E a falsa tia me diria: ‘Será que eu poderia beber alguma coisa?’ e eu diria na frente de todo mundo: ‘Não, não, você sabe muito bem que o álcool não lhe faz bem, você não deve beber’. Então a tia se afastaria com cara muito triste e iria se sentar no seu canto. (...) Um pouco mais tarde, a tia se levantaria e viria em minha direção com um olhar de extrema súplica e eu lhe diria bem alto: ‘Não, não, não adianta me olhar assim...E a sua atitude constrange todo mundo’, e a pobre velha diria: ‘Oh, oh!’. Todos se sentiriam realmente encabulados, não saberiam mais onde pôr os olhos e minha falsa tia começaria a chorar baixinho. Finalmente, eu lhe diria: ‘Escute, você está estragando a nossa noite, vá embora, volte para o seu quarto’. Nunca fiz essa brincadeira, pois tenho muito medo de que alguém bata em mim”.



* Trabalho de minha autoria produzido em tempos acadêmicos.





O INQUILINO SINISTRO (THE LODGER: A STORY OF THE LONDON FOG, 1927) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Ivor Novello, Marie Ault etc. 


OS 39 DEGRAUS (THE 39 STEPS, 1935) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Robert Donat, Madeleine Caroll etc. 


A DAMA OCULTA (THE LADY VANISHES, 1938) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Margaret Lockwood, Michael Redgrave etc. 


CORRESPONDENTE ESTRANGEIRO (FOREIGN CORRESPONDENT, 1940) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Joel McCrea, George Sanders etc. 


UM CASAL DO BARULHO (MR. & MRS. SMITH, 1941) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Carole Lombard, Robert Montgomery etc. 


SUSPEITA (SUSPICIOUN, 1941) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Cary Grant, Joan Fontaine etc. 


OS PÁSSAROS (THE BIRDS, 1963) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Tippi Hedren, Rod Taylor, Jessica Tandy etc. 


CORTINA RASGADA (TORN CURTAIN, 1966) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Paul Newman, Julie Andrews etc. 


TOPÁZIO (TOPAZ, 1969) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Frederick Stafford, Philippe Noiret etc. 


FRENESI (FRENZY, 1972) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Jon Finch, Alec McCowen etc. 


TRAMA MACABRA (FAMILY PLOT, 1976) 
Direção: Alfred Hitchcock 
Com: Karen Black, Bruce Dern etc. 


JULES E JIM – UMA MULHER PARA DOIS (JULES ET JIM, 1962) 
Direção: François Truffaut 
Com: Oskar Werner, Henri Serre, Jeanne Moreau etc.